A biomedicalização veio transformar tanto a organização como as práticas da medicina contemporânea (Clarke, Shim, Mamo, Fosket e Fishman, 2003), a par do “governo da vida pelos padrões” e procedimentos normalizados (Thévenot, 2009) e das tecnologias do eu no âmbito da “política da própria vida” associada ao autogoverno (Rose, 2001).
O embrião humano torna-se parte de um compromisso global em prol da promoção da saúde e prevenção de doenças, cujas promessas e expectativas se encontram associadas aos resultados esperados de novas linhas de investigação científica. As células estaminais embrionárias surgiram como um dos novos caminhos mais promissores para o tratamento de uma ampla gama de problemas de saúde (Prainsack, Geesink & Franklin, 2008), baseando-se o seu potencial como “super-heróis” na grande esperança nos respetivos poderes sobrenaturais de curar e regenerar (Burns, 2009).
No entanto, o uso de embriões humanos na investigação científica continua a suscitar alguns “motivos de preocupação” (Latour, 2003): a adequação da sua utilização na pesquisa; as reais possibilidades de regeneração dos tecidos humanos ou a sua potencial mercantilização; o turismo científico; a instrumentalização de casais enquanto fonte de embriões humanos; e o escrutínio público das expectativas e receios sobre o papel da tecnologia e da ciência na sociedade (Luna, 2007). Simultaneamente, os embriões são “objeto de cuidados” no quadro da tecnociência (Bellacasa, 2010).
Existe uma oposição entre a biologização médico-legal dos embriões entre os juristas e os médicos, e a sua representação como seres éticos por parte dos casais, estabelecendo-se assim uma variedade de relações ontológicas de natureza moral, afetiva e social (Silva e Machado, 2009). Existem diferentes classificações dos embriões criopreservados na documentação ética portuguesa sobre regulação da investigação: neoestrutura biológica, artefacto de laboratório, ser humano, pessoa em potencial (Alves, Machado e Silva, 2013).
Encontramos um contraste entre o “feto autêntico” como um novo ser humano, no qual os pais investem em termos de singularidade individual e laços de parentesco, e o “tecnofeto” que decorre do desenvolvimento tecnológico e dos embriões congelados produzidos no âmbito da fertilização in vitro (Boltanski, 2004). Os significados diferem consoante estamos a falar da “criança dos possíveis” (Mathieu, 2013) ou de um material para investigação científica com fins terapêuticos (Kent, Faulkner, Geesink e Fitzpatrick, 2006; Svendsen, 2007). O impacto da socialização biomédica e da reprodução tecnologizada dá origem ao “embrião elusivo” que neutraliza fracassos e sofrimentos (Becker, 2000).
A procriação medicamente assistida (PMA) tem a ver com “produzir pais” e crianças em simultâneo através de uma “coreografia ontológica” que naturaliza o parentesco, enquanto que as questões complexas presentes em debates normativos e controvérsias públicas sobre a manipulação da vida e sobre a investigação com células estaminais, são negociadas através de uma “coreografia ética” (Thompson, 2005; Thompson, 2013).
Os embriões não constituem entidades biológicas fixas e universais, mas são definidos e transformados por referência à sua localização temporal e espacial, tanto a nível pessoal como sociocultural, a saber: a etapa no processo de tratamento; as subjetividades de cada projeto parental; as técnicas médicas utilizadas e os métodos de transferência de embriões frescos ou congelados; a legislação em vigor; os desenvolvimentos passados e futuros da ciência em geral e da conceção assistida em particular (Haimes, Porz, Scully e Rehmann-Sutterb, 2008). Tal resulta na fluidez dos significados (morais e sociais) e dos estatutos (pessoal, familiar, clínico, legal, ético, cultural e histórico) do embrião.
A lei portuguesa que enquadra a PMA (Lei n.º 32/2006, de 26 de julho posteriormente alterada pela Lei n.º 17/2016 de 20 de junho) apenas permite a criação de embriões in vitro para tratamentos de infertilidade ou para prevenir a transmissão de doenças graves, sendo proibida a sua criação deliberada para fins de investigação. Os embriões excedentários (criopreservados e armazenados por três anos eventualmente extensíveis por mais três), que não se incluem em nenhum projeto parental, podem ser doados a outros casais, à investigação científica ou destruídos, desde que os beneficiários assim o autorizem (mediante a assinatura de um consentimento informado). A experimentação com embriões humanos necessita de aprovação prévia pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, desde que produza benefícios para a humanidade. Apenas em 2016, dez anos após a publicação da lei, foi autorizado o primeiro projeto de investigação utilizando embriões humanos, o qual visa estudar o processo de implantação embrionária (os dois anteriores pedidos tinham sido recusados).
Estudos mostram que a maioria dos casais portugueses está disposta a doar os seus embriões excedentários para a investigação científica (Silvestre, 2015). No entanto, existe falta de informação sobre os custos e riscos da doação e criopreservação de embriões, bem como falta de conhecimento acerca dos projetos de pesquisa nesta área.
Em Portugal, existem poucos estudos empíricos sobre embriões humanos in vitro em ciências sociais e humanas, contrariamente ao que acontece nas ciências da vida (Alves e Silva, 2011). O assunto foi abordado sob o ponto de vista do seu estatuto legal (Raposo, 2014), das questões éticas e científicas dos projetos de investigação com embriões humanos (Alves e Silva, 2011), de como os casais que possuem embriões criopreservados decidem sobre o seu destino (Silvestre, 2015), da revisão da literatura acerca dos fatores que influenciam a decisão dos casais sobre a doação ou não de embriões para fins de pesquisa científica (Samorinha, Pereira, Machado, Figueiredo e Silva, 2015), da necessidade de uma abordagem centrada no paciente no que se refere à doação de embriões para a investigação (Samorinha e Silva, 2016), bem como na perspetiva da compreensão jurídica, médica e “leiga” de embriões humanos (Silva e Machado, 2009) e da visão dos doentes sobre os limites de tempo do armazenamento dos embriões (Pereira et al., 2015).
Este projeto tem como objetivo estudar as representações e práticas em torno dos embriões humanos in vitro, criados no quadro da aplicação da PMA. A PMA já foi explorada em anteriores projetos de pesquisa da atual equipa de investigadores em termos de agentes, contextos e processos da sua regulamentação (Augusto, 2006, 2009, 2014) e das controvérsias públicas, tensões e constrangimentos pessoais acerca da doação de gâmetas (Delaunay, 2011, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017a, 2017b, 2017c, 2017d, 2018a, 2018b, 2019a, 2019b; Delaunay e Martins, 2015). Deste modo, propomos uma nova perspetiva de análise baseada nas formas de objetivação e avaliação dos embriões humanos por especialistas e leigos de acordo com o seu destino, ou seja, dependendo do contexto de manipulação (procriação medicamente assistida e pesquisa com células estaminais embrionárias) e de como esses estatutos e significados circulam entre pessoas, através do tempo e do espaço. A reflexão articulada sobre a prática dos profissionais de saúde, a perspetiva dos utentes/pacientes, as formas organizacionais e as políticas públicas justificam o carácter inovador do projeto.
Instituições de Acolhimento
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH), através do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA).